sexta-feira, 22 de junho de 2012
Minha rua é um túnel verde
por Selvino Heck
Junho de 2012, em plena Rio+20 e Cúpula dos Povos, minha rua, Tomaz Flores, Porto Alegre, é considerada oficialmente um túnel verde: “Conhecida por sua arborização, Porto Alegre deu um passo em direção a uma proteção mais rígida de seus túneis verdes, expressão tipicamente local que identifica a cobertura de um lado a outro de vias por copas de árvores perpassadas. A medida contempla 72 logradouros que se tornarão áreas de uso especial e não poderão sofrer intervenções capazes de alterar sua paisagem” (Zero Hora, 31.05.12, p. 54).
Diz o autor do projeto de lei, vereador Beto Moesch: “Há proteção vegetal em outras cidades do mundo, mas não com essa figura do túnel verde. Isso é uma coisa muito porto-alegrense. Porto Alegre pode chamar a atenção dos seus turistas daqui para a frente dizendo que é a cidade das praças, dos parques e dos túneis verdes. É uma expressão que agora está também no mundo jurídico, não somente no imaginário coletivo”.
A rua Tomaz Flores termina numa lomba. Quando entro por ela, descendo em direção à minha casa, um mar de galhos de grandes árvores cobre todo seu leito dos dois lados. Em tempos de sol, um misto de claridade e sombra atravessa os troncos e ‘ilumina’ a rua. São árvores de décadas e dão um ar de tranquilidade e paz a seus moradores e transeuntes. É como se eu entrasse num bosque, olhasse para o céu ou ao redor e visse folhas balançando, silêncio de primavera, um ronronar de vento e brisa.
A decretação legal dos túneis verdes significa que a partir de agora o poder público ou a prefeitura poderão continuar podando as árvores, desde que não se desfigure a formação arbórea. Também poderão ser cortadas, se estiverem mortas ou causando algum dano, com um laudo técnico da Secretaria do Meio Ambiente. Cabos ecológicos ou subterrâneos deverão ser usados para evitar conflitos entre galhos e fios de luz.
Fui criado cercado por árvores e natureza desde sempre. Ao lado de casa, Vila Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, até hoje um bosque enfeita o ambiente. Lá íamos fazer piqueniques, quando tios e tias e suas enormes famílias visitavam a avó Gertrudes. Fazíamos uma limpeza geral, abrindo corredores até o centro do bosque onde um taquaral imponente dava sombra. Mais adiante um pinheiro, que infelizmente morreu de velho, servia seus pinhões no inverno que cozíamos ou assávamos na chapa quente do fogão a lenha. Mais adiante ainda, uma fonte fornecia a água para os animais. A cisterna, que recolhia a água da chuva, provia os humanos.
O Seminário dos franciscanos em Taquari, RS, onde passei a adolescência e início da juventude, era cercado de árvores, especialmente seu campo de futebol, e ladeado pelo rio, que víamos correr do alto do prédio imponente. Daltro Filho, município de Imigrante, onde fiz o noviciado franciscano, era cercado por morros cheios de verde, árvores, bosques e natureza.
A Lomba do Pinheiro, final dos anos setenta, divisa entre Porto Alegre e Viamão, fica ao lado do Parque Saint Hillaire, onde íamos jogar futebol e fazer um churrasco, nos poucos tempos de folga das reuniões e intensas atividades dos grupos de reflexão da Bíblia, das lutas por melhorias no bairro e de organização sindical, popular e comunitária.
Posso orgulhar-me, portanto, por ter escolhido morar numa rua oficialmente considerada túnel verde, em ano de Rio+20 e Cúpula dos Povos. Mas não é apenas de verde e de árvores que se trata. Trata-se de pensar as cidades como grandes aglomerações humanas que precisam respirar. Assim como precisa respirar quem nelas mora. É preciso questionar se milhões de pessoas podem continuar amontoadas, muitas vezes sem condições de habitabilidade, saneamento básico, etc. Questionar se pode continuar aumentando dia pós dia a quantidade já enorme de carros em circulação, poluindo e atravancando ruas, praças e passeios públicos. E se se pode produzir tanto lixo que não se decompõe por décadas.
Ou seja, é preciso pensar qual o projeto de desenvolvimento, pensar e agir sobre o que se consome diariamente, o que e como se produz, o que se come, como as pessoas são transportadas de um lugar a outro, se há qualidade de vida, do porquê há um ‘centro’ e ‘bairros nobres’ e uma ‘periferia’ pobre onde moram as multidões, se as decisões são do Estado e da sociedade ou do mercado. Não há túneis verdes nas vilas populares, por exemplo.
Estou feliz por morar numa rua que é um túnel verde. Mas estou triste porque a cidade inteira de Porto Alegre, e tantas outras, não são um imenso túnel verde.